segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Emílio, ou da Educação (Jean Jaques Rousseau)

“Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos dos homens” (Rousseau)


1 Introdução

Na história das idéias o nome do suíço Jean Jaques Rousseau (1712-1778) fulgura na constelação dos grandes pensadores, sobretudo, no contexto das grandes discussões dos ideais (liberdade, igualdade e fraternidade) que circundaram o contexto da Revolução Francesa. Destaca-se, ainda no contexto de tais ideais, que o princípio fundamental da obra de Rousseau, pelo qual ela é definida até os dias atuais, é que o homem é bom por natureza, mas está submetido à influência corruptora da sociedade. Um dos sintomas das falhas da civilização em atingir o bem comum, segundo o pensador, é a desigualdade, que pode ser de dois tipos: a que se deve às características individuais de cada ser humano e aquela causada por circunstâncias sociais.

Dos muitos escritos de Rousseau tratar-se-á aqui de seu tratado sobre educação, o Emílio, especificamente dos conteúdos do Livro I que versa sobre “A idade da natureza – o bebê (infans)”. A obra Emílio, ou da Educação data de 1762 sendo, portanto, contemporânea do Contrato Social . Ambas foram extremamente polêmicas e causadoras de diversos problemas para Rousseau. Além de sua perseguição política, Rousseau foi condenado por uma carta pastoral do bispo de Paris, não podendo lecionar ou se aproximar da universidade . O Emílio é uma obra com singularidade especial, pois já em seu tempo evoca a democratização da educação rompendo com o modelo das escolas monacais e palacianas tuteladas pela Igreja e pela monarquia, promovendo assim uma escola e Estado laicos.

O Emilio é dividido em cinco livros:

a) Livro I: idade da natureza – o bebê (infans)

b) Livro II: idade da natureza – de 2 a 12 anos (puer)

c) Livro III: idade da força – de 12 a 15 anos

d) Livro IV: idade da razão e das paixões – de 15 a 20 anos

e) Livro V: idade da sabedoria e do casamento – de 20 a 25 anos

Os conteúdos do Livro I são sumariados Launay com a seguinte divisão:

- Introdução: importância e objetivo da educação

- A verdadeira ama é a mãe

- O verdadeiro preceptor é o pai

- Um aluno imaginário: Emílio, órfão

- A ama de Emílio

- Antes de falar, antes de entender, ele já se instruiu.



No prefácio do Emílio é interessante perceber que Rousseau escolhe como epígrafe a frase de Sêneca que, embora pareça fortuita ou casual, reflete sua concepção de homem natural. Em outras palavras, o Emílio enfatizará o processo de educação que deve conservar a inocência e as virtudes do estado de natureza, remetendo a uma bondade humana inata. Afirma que “ao que chamaremos parte sistemática (...) não é senão a marcha da natureza” . Assim o pensador suíço, em sua obra, prega o retorno à natureza e o respeito ao desenvolvimento físico e cognitivo da criança.

Rousseau afirmará, ainda no prefácio do Emílio, que seu objetivo é alcançar as mães, visto que são elas quem primeiro educam as crianças . O autor também fala sobre o volume do livro, afirmando que o mesmo não é "volumoso", pois o que é grande é o tamanho e a importância do assunto que ele trata . Com efeito, sua obra é a proposta de uma boa educação, assunto que não se esgota nunca. Sua intenção é buscar conhecer seus alunos e a infância, tendo como objetivo melhor formá-los para a vida. Rousseau confessa o caráter pessoal de sua obra:

Para mim, basta que em toda parte onde nasceram homens se possa fazer deles o que proponho; e que, tendo feito deles o que proponho, se tenha feito o que há de melhor, tanto para eles próprios quanto para os outros. Sem não cumprir este compromisso, sem dúvida terei errado; se porém cumpri-lo, será errado também exigir mais de mim, pois é só isso que prometo.

2 Livro 1

O Livro I Emílio, como ventilado anteriormente, trata do bebê (infans) como um dos períodos – ou fases – aos quais Rousseau denomina como “idade da natureza” (o outro período da idade da natureza será de 2 a 12 anos – puer). Rousseau inicia o Livro I afirmando que as coisas acontecem corretamente quando são realizadas pela natureza, mas com a alteração do homem as coisas pioram. Por isso, o homem não pode ficar abandonado e sem diretriz. Ele necessita da família e do Estado para poder se desenvolver plenamente. Com isso, Rousseau procura justificar a importância e objetivo da educação. Segundo o pensador suíço “Moldam-se as plantas pela cultura, e os homens pela educação” .

Partindo do pressuposto de que a educação molda os homens o teórico segue defendendo que tal educação deve iniciar já na infância. O estado da infância é importante para o amadurecimento do homem, sendo a educação um processo. O homem é desprovido de recursos naturais que o façam forte, tais como garras, dentes e etc. Contudo, ainda que o homem fosse forte a educação seria importante. Rousseau é adepto da teoria de "potência não é nada sem controle", tanto para seu bem como para o bem da sociedade, o homem deve receber uma boa formação. Note-se que nesse ponto existe em Rousseau a concepção de uma certa paidéia (formação integral) e que, tal como os gregos, Rousseau considerava inculto (apaideutos) aquele que não fizera sua paidéia. A educação fornece tudo o que o ser humano não possui, isto é, força; juízo e outros benefícios.

Existe na concepção de Rousseau três tipos de educação: a da natureza, a dos homens, a das coisas . O problema apontado pelo autor é que estes três tipos de educação não eram apenas tratados de forma diferente, mas em oposição. Sua proposta é feita no sentido de eliminar essa oposição. A educação da natureza aborda o desenvolvimento interno do homem, a educação dos homens faz uso desse desenvolvimento eterno, a educação das coisas aborda o ganho sobre as nossas experiências. Uma junção dessas formas seria o ideal de educação para o autor. Contudo, só a educação dos homens está sob a nossa total responsabilidade e possibilidade.

Ainda assim, deve-se tentar se aproximar da educação da natureza. A natureza não é somente o hábito, por exemplo, as plantas podem precisar de uma alteração na sua posição para que gerem melhores frutos (Rousseau dá esse exemplo). A indagação de Rousseau será a seguinte: visto que a educação é um hábito que alguns perdem e outros não, qual o motivo de tal diferença? Na sociedade, por exemplo, o civil deve se sobrepor ao natural:

Aquele que, na ordem civil, quer conservar o primado dos sentimentos da natureza não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo, sempre passando das inclinações para os deveres, jamais será nem homem, nem cidadão; não será bom nem para si nem, nem para os outros. Será um desses homens de hoje, um francês, um inglês, um burguês; não será nada.



Na ordem social, ensina-se o ser humano para o cumprimento de sua vocação. Na ordem natural, ensina-se a ser homem. A educação integral é para viver os benefícios e saber suportar os malefícios. A educação deve saber corresponder a um tempo de mudanças, devendo ensinar os seres humanos, a partir da infância, a exercitar as dificuldades para poder enfrentá-las, seguindo assim o curso da natureza no enfrentamento dos acidentes da vida humana:

Trata-se menos de impedi-lo (a criança) de morrer que de fazê-lo viver. Viver não é respirar, mas agir; é fazer uso de nossos órgãos, de nossos sentidos, de nossas faculdades, de todas as partes de nós mesmos que nos dão o sentimento de nossa existência. O homem que mais viveu não é o que contou o maior número de anos, mas aquele que mais sentiu a vida. Tal homem foi enterrado aos cem anos e estava morto desde o nascimento. Melhor seria ir para a tumba na juventude, se pelo menos tivesse vivido até essa idade.



Segundo Rousseau, a falta de liberdade do ser humano começa ao nascer. Assim que nasce o pobre bebê é enrolado em faixas e panos que impedem sua movimentação. Essa movimentação é, para o autor, vital. Para ele, a diferença entre um desenvolvimento físico saudável e o doentio pode ser explicada a partir disso. As mães são as culpadas dessas faixas e panos, sendo também culpadas de não amamentar os seus filhos. Afinal, segundo Rousseau, elas passam o cuidado das crianças para as amas, que operam tal coisa junto aos pobres bebês. A partir deste ponto o autor evoca a condição materna como responsável pela educação inicial da criança

A primeira educação cabe, segundo Rousseau, por natureza, às mulheres (as mães ). Logo, é de suma importância instruir as mães a fim de elas não estraguem os seus filhos. Existe também, para ele, uma aliança entre as mulheres e os médicos que tem por fim liberar as mães da amamentação. A ama de leite é um problema para a educação da criança. Afinal, a criança devota amor a quem primeiro lhe atende. Contudo, por causa da hierarquia familiar e social, a criança deve devotar amor à mãe e não para sua ama de leite. Qual será então a solução? O filósofo propõe que se trate a ama de leite como uma mera criada e que essa não tenha outros contatos com a criança, fazendo-se assim, preserva-se a educação da criança. Para Rousseau, o ideal seria que as próprias mães amamentassem. Ele sabe, contudo, que isso seria difícil no seu tempo. Outra constatação feita por ele é sobre o alto índice de mortalidade infantil. Se houvesse amamentação adequada com uma mãe com leite recente para uma criança recém-nascida (e assim evolutivamente), talvez esse índice fosse menor.

Outro aspecto interessante da primeira infância que será desenvolvido por Rousseau é sobre a "criança tirana". Segundo ele, uma boa educação não deve propiciar o surgimento de uma criança tirana, mas deve fornecer limites do que ela pode ou não fazer em relação ao mundo exterior. Excesso de mimos ou de pancadas não ajudam nesse processo. Para Rousseau só pais esclarecidos podem criar bem os seus filhos, por isso a verdadeira ama é a mãe e o verdadeiro preceptor é o pai. Aqui cabe frisar o paradoxo biográfico de Rousseau que abandonou seus próprios filhos. Segundo Launay, em função deste abandono, pesava sobre Rousseau certo sentimento de culpa . O próprio Rousseau expressa isso ao tentar justificar:

A decisão que tomara como relação aos meus filhos, por mais racional que me tivesse parecido, nem sempre me deixava o coração tranqüilo. Ao meditar sobre o meu Tratado de Educação, senti que tinha negligenciado deveres de que ninguém me poderia dispensar.



Tecidas essas considerações, Rousseau criará o seu protótipo ideal de aluno: Emílio. O instrutor de Emílio não deve ser jovem, mas maduro. Seu preceptor deve fazer a função que Emílio reconhecerá mais tarde no governante, nesse sentido deve educá-lo para a política. Emílio deve ser francês, nem negro e nem de outra nacionalidade que, segundo Rousseau, não possuem evolução intelectual. O aluno deve ainda ser rico, visto que o pobre não necessita de plena formação, a sua lhe é suficiente. Deve também ser órfão, para criar a condição ideal entre discípulo e mestre: libertar-se mutuamente no futuro. Emílio deve ser saudável, possuir um corpo forte, não ser dado às paixões e nem efeminado. Emílio deve seguir a natureza e o bom governo deve lembrá-lo sempre disso. Como a educação é um processo, de nada serviria Emílio já ter nascido adulto. Afinal, mesmo no reino da natureza tudo é instrução. Rousseau espera nunca levar Emílio ao médico, visto que considera essa classe como abjeta. Ele acha somente a higiene útil na medicina. Os médicos são uma classe que não ajudam as pessoas para a vida, mas vivem de prepará-las para a morte.

A ama de Emílio deve ser uma estranha. Emílio deve beber leite novo de uma ama nova e ir mudando gradativamente. A ama deve ser temperante para não alterar os humores da criança. Também não deve haver mudanças, deve-se preferir uma só ama (fixa). A ama deve ter uma dieta balanceada para produzir um bom leite. Segundo Rousseau, para a produção de um bom leite nada é melhor do que o ar do campo, logo a ama pode ser uma camponesa. Nosso autor também tecerá uma crítica às cidades e um elogio ao campo. Não se deve usar vinho misturado à água do primeiro banho e deve-se usar água primeiro quente, depois morna e ainda depois fria ou gelada. Essa cadeia evolutiva ajudará na movimentação da criança.

Também não se deve mimar a criança ou torná-la viciada em muitos carinhos, só se deve fazer o que ela deseja quando ela já tiver atingido uma maturidade para saber o quer realmente. Deve-se desmistificar as consciências infantis, isto é, mostrar a elas máscaras, armas de fogo e fazer com que elas aprendam o que são e para que servem. Deve-se estimular a criança a ter contatos com outros corpos a fim de que possa conhecê-los. Conhecendo essas coisas a criança falará um língua universal, que todos podem compreender. Não é preciso que a ama fique tagarelando coisas numa linguagem que a criança não entende.

Por fim, encerrando a primeira parte do Emílio, Rousseau defende quatro máximas para a formação do seu pupilo: 1) ajudar a criança na sua carência; 2) dar-lhe apenas o que é útil, sem fantasias; 3) entender sua linguagem e lhe dar o que ordena sua natureza; 4) criar condições para sua independência, para que saiba discernir.

Rousseau conclui o primeiro livro da sua obra Emílio sintetizando o que ele compreendia o que era o bebê (0 a 2 anos) segundo a idade da natureza:

Os primeiros desenvolvimentos da infância dão-se quase todos ao mesmo tempo. A criança aprende a falar, a comer e andar aproximadamente ao mesmo tempo. Esta é propriamente a primeira fase de sua vida. Antes, não é nada mais do que aquilo que era no ventre da mãe; mal tem sensações e nem mesmo percebe a sua própria existência.

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

É lindo perceber a maneira como Rousseau fala da infância em uma época onde a criança ainda era tratada como um adulto em miniatura. Respeitar a natureza do ser e as questões que envolvem o desenvolvimento humano é uma das grandes responsabilidades do professor.

Mariana Gomes