sexta-feira, 23 de abril de 2010

Descartes em uma perspectiva pedagógica contemporânea



Descartes apresenta sua filosofia ou “verdade” a todo os homens indiscriminadamente. Apenas adverte-nos da necessária atenção rigorosa para sua compreensão.


“... Ele próprio nos adverte que não escreve, de modo algum, para aqueles que lerem suas Meditações “apenas como um romance, para se desentediar” [...] Mas é ainda necessário ir além. Não é nada, ou quase nada, abranger com o olhar este vasto conjunto: o que é necessário aqui é compreender, isto é, caminhar ao longo das veredas cuja trama é tão cerrada que a desatenção de um instante nos extravia... ”(Descartes, volume l, Introdução)


Não é mais do que atenta nosso contemporâneo educador Paulo Freire, julgando necessário ir além da curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica. Tal como Descartes, assinala a necessidade de uma rigorosidade metódica (aproximação do objeto) para a superação (não ruptura) da curiosidade ingênua (senso comum) em curiosidade epistemológica (crítica).


Lançando mão de um artifício para a construção da curiosidade epistemológica, Descartes, aponta a hipótese do “gênio maligno”- a dúvida. O que a hipótese do “gênio maligno” levanta é, na verdade, uma séria questão: a do valor objetivo dos conhecimentos científicos. Pondera que:


“... existe apenas um caminho que supera a dúvida: o que a atravessa toda, esgotando- lhe todas as dimensões. Ou seja, parece-lhe impossível vencer a dúvida evitando-a ou pretendendo instalar-se desde logo numa frágil certeza- é frágil justamente porque ainda não submetida aos testes da dúvida...”


“... Eis por que Descartes propõe outros preceitos metodológicos complementares ou preparatórios da evidência: o preceito da análise (dividir cada uma das dificuldades que se apresentam em tantas parcelas quantas sejam necessárias para serem resolvidas), o da síntese(conduzir com ordem os pensamentos, começando dos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para depois tentar gradativamente o conhecimento dos mais complexos) e o da enumeração (realizar enumerações de modo a verificar que nada foi omitido). Tais preceitos representam a submissão a exigências estritamente racionais...” (Descartes, volume l, Prefácio)


Freire vai chamar “o gênio maligno” de “pensar certo”; o pensar que não se baseia na memorização mecânica.


“... Pensar certo significa procurar descobrir e entender o que se acha mais escondido nas coisas e nos fatos que nós observamos e analisamos [...] E uma das condições necessárias ao pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas [...] A arrogância de achar-se o detentor de verdades imutáveis e inquestionáveis também é pensar errado...” (Freire, Paulo, Pedagogia da Autonomia, 2000 p. 30).


“A curiosidade é condição para a criatividade, ela é a “indagação inquietadora” (Freire, p. 35) que nos move no sentido de desvelar o mundo que não fizemos e acrescentar a ele algo que nós fazemos. A prática educativa progressista que visa educar para a autonomia deve promover a superação para a curiosidade epistemológica, não há como ser autônomo sem criticidade, mantendo uma visão ingênua do mundo.


A rigorosidade metódica é necessária para que conheçamos melhor o mundo e a nós mesmos, e assim, tenhamos maior capacidade de nos determinarmos, elemento essencial para sermos autônomos, para nos percebermos como seres pensantes, sujeitos da nossa história. Essa é a única certeza contida no “cogito” de Descartes: da existência do eu enquanto ser pensante.


“... Toda a existência do eu aparece dada, nesse primeiro momento, como absolutamente dependente do pensamento: “se deixasse de pensar, deixaria totalmente de existir”; o que leva à inevitável explicitação do que está contido no “Se duvido, penso”. Leva ao cogito: “Penso, logo existo”(Cogito ergo sum); cujo desdobramento natural é : existo “como coisa pensante...”(Descartes,volume l, Prefácio).


Do pensamento ao ser que pensa- realiza-se, então, o salto sobre o abismo que separa a subjetividade da objetividade.


Daí o caráter inteiramente singular da antropologia cartesiana que tem seu traço mais interessante seguramente na concepção do reinado da união da alma com o corpo.


“... União incompreensível, com efeito, pois mistura e confunde o divisível, que é a extensão, com o indivisível, que é o pensamento; Descartes quer apenas tentar mostrar como conheço, por intermédio do indivisível, o que ocorre no divisível...”. (Idem, Introdução)


Daí o caráter radicalmente obscuro e confuso, mas perfeitamente autêntico em seu gênero, da sensação, dos sentimentos, do sensível - “a máquina”* ; que apreende qualidades e não essências objetivas.


De maneira geral, essa união entre a alma e o corpo é introduzida no “Discurso” como coroamento da ciência, conhecimento diretamente aplicado à busca da felicidade. O racionalismo cartesiano se nos apresenta, neste ponto, como a determinação necessária de um fim cujos meios nos escapam. Pede uma filosofia da história, uma dialética das obras da razão.


“... O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e pelas idéias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e quimeras**. E quando, na ruptura de controles racionais, culturais, materiais, há confusão entre o objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, quando há hegemonias de ilusões, excesso desencadeado, então o homo demens submete o homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço dos seus monstros...” (Morin, Edgar. Os Sete Saberes necessários à educação do Futuro. 5. Ed. São Paulo: Cortez, 2002,p.60)





*“... Enquanto corpo orgânico, o homem é animal, o que quer dizer que convém descrevê-lo como uma máquina, mais complexa certamente que os outros sistemas materiais, e que tudo quanto ocorre nesta máquina deve ser fisicamente explicado...” (Descartes, volume l, Introdução).
**Grifo nosso.

Um comentário:

luciana rafaela disse...

GOSTEI MUITO DO BLOG. PARABÉNS PELA INICIATIVA. ÓTIMA LEITURA.!!