quinta-feira, 20 de maio de 2010

A Fenomenologia do Espírito

Hegel concebeu a fenomenologia do espírito como uma introdução ao seu sistema filosófico. A obra pretende conduzir o entendimento humano do reino da experiência diária ao do conhecimento real filosófico, à verdade absoluta. O mundo da realidade não é tal como aparece e sim como é compreendido pela filosofia. Hegel começa com a experiência da consciência ordinária na vida cotidiana; mostra que esse tipo de experiência, como qualquer outro, contém elementos que solapam a confiança na sua própria capacidade de perceber o “real” e forçam a busca contínua em direção a tipos mais altos de compreensão. O progresso em direção a estes tipos mais altos é um processo de experiência interior, um processo que não é produzido a partir do exterior. Se o homem prestar atenção ao resultado de sua experiência, abandonará um tipo de conhecimento e passará a outro; irá da certeza sensível à percepção, da percepção ao entendimento, do entendimento à certeza-de-si, até atingir a verdade da razão. A “Fenomenologia do Espírito” expõe, portanto, a história imanente da experiência humana. No início da experiência, o objeto parece ser uma entidade estável, independente da consciência; sujeito e objeto parecem alheios um ao outro. O progresso do conhecimento, porém, revela que os dois não subsistem isoladamente. Torna-se evidente que o objeto tira sua objetividade do sujeito. “O real”, o que a consciência efetivamente apreende no fluxo sem fim das sensações e percepções, é um universal que não pode ser reduzido a elementos objetivos independentes do sujeito (a modificação do próprio sujeito). Em outras palavras, o objeto real é constituído pela atividade (intelectual) do sujeito; seja como for, ele “pertence” essencialmente ao sujeito. Este último descobre que é ele mesmo quem está “por trás” dos objetos e que o mundo se torna real em virtude do poder compreensivo da consciência (para Hegel há uma consciência q constitui os objetos). Hegel ligará o processo epistemológico da autoconsciência (que vai da certeza sensível à razão) ao processo histórico da humanidade que vai da servidão à liberdade. Os “modos ou formas da consciência” aparecem ao mesmo tempo como realidades históricas objetivas, como “estado do mundo”. Cada forma de consciência que surge no progresso imanente do conhecimento, cristaliza-se como a vida de uma dada época histórica. O processo vai da cidade-estado grega à Revolução Francesa. A realização da liberdade dar-se-á na passagem do período revolucionário francês ao período da cultura idealista alemã (Cf. Marcuse, 1978, p. 97-99).

Na primeira seção da “Fenomenologia do Espírito”, Hegel vai tratar da “Certeza sensível”, e mostra que a verdade não está nem como o objeto singular e nem com o eu individual; ela é resultado de um duplo processo de negação: da existência per se do objeto e do eu individual, com a transferência da verdade para o eu universal. A objetividade é duplamente mediada ou construída pela consciência; o desenvolvimento do mundo objetivo está totalmente ligado com o desenvolvimento da consciência. A certeza sensível torna-se percepção. Esta é a temática da segunda seção: “A Percepção”, que se distingue da certeza sensível porque seu princípio é a universalidade. Os objetos da percepção são as coisas, ou melhor, a “unidade específica na diversidade das propriedades das coisas”, ou seja, a “coisidade” da coisa. A coisa vem a ser ela mesma através de sua oposição a outras coisas; ela é a unidade dela mesma com seu oposto; ou seja, a própria substância da coisa deve ser extraída da sua relação auto-estabelecida com as outras coisas. Isto, porém, a percepção não tem o poder de realizar; é trabalho do entendimento, que será o tema da terceira seção: “Força e Entendimento. Fenômeno e mundo supra-sensível”.

Hegel introduz aqui o conceito de “força” para explicar a maneira como a coisa se condensa como uma unidade, que se autodetermina nesse processo. A substância da coisa, diz ele, só pode ser compreendida como força (está lendo Schelling). A força não é uma entidade do mundo da percepção; podemos perceber apenas o seu efeito ou o que ela expressa; sua existência para nós consiste nessa expressão de si mesma. Ela nada é fora de seu efeito; seu ser consiste inteiramente neste vir-a-ser e desaparecer. E se a substância da coisa é a força, seu modo de existência revela-se como aparência. A descoberta de que a força é a substância das coisas abre ao processo do conhecimento o reino das essências (da coisa em si). O mundo da experiência sensível e da percepção é o reino da aparência (fenômeno). O reino da essência é um mundo “supra-sensível”, para além deste reino móvel e evanescente da aparência. O reino da essência surge como o mundo “interior” das coisas. A análise seguinte empenha-se em mostrar que atrás da aparência das coisas está o próprio sujeito; é ele quem constitui a essência mesma das coisas (o Espírito Absoluto constrói a realidade). A insistência de Hegel em que o sujeito seja descoberto por trás da aparência das coisas é uma expressão do desejo básico do idealismo: de que o homem se aproprie do mundo que ainda lhe é estranho, transformando-o em um mundo seu (através da razão -espírito). O conceito de força leva à transição da consciência à autoconsciência. Uma força exerce um poder definido sobre seus efeitos e continua a mesma no meio das suas várias manifestações; ela atua segundo uma lei inerente, de modo que a verdade da força é a “lei da força”. A força sob a lei é o que caracteriza o sujeito autoconsciente. Assim a essência do mundo objetivo anuncia a existência do sujeito autoconsciente. A verdade do entendimento é a autoconsciência, a consciência-de-si.

As três primeiras seções da “Fenomenologia do Espírito” constituem uma crítica ao positivismo, ao senso comum, que apelam para a certeza dos fatos. Mas, como Hegel mostra, num mundo em que os fatos não revelam o que a realidade pode e deve ser, o positivismo equivale a renunciar às reais potencialidades da humanidade, em favor de um mundo falso e alienado. Para Hegel, o universal é mais que o particular. Isto significa, concretamente, que as potencialidades dos homens e das coisas não se esgotam nas formas e relações dadas em que de fato aparecem; significa que os homens e as coisas são tudo o que foram e realmente são mais ainda que tudo isto. Ao colocar a verdade no universal, expressa a convicção de que nenhuma forma particular determinada, quer na natureza quer na sociedade, corporifica toda a verdade. (a verdade é própria história vai mto além de todo o conhecimento q se tem sobre a própria história)

Na quarta seção, “A verdade da consciência de si mesmo” (autoconsciência), Hegel reassume a análise entre o indivíduo e o mundo. O homem descobrirá que sob a aparência das coisas se escondia sua própria autoconsciência e agora ele se dispõe a realizar esta experiência para provar a si mesmo que é senhor deste mundo. A autoconsciência se encontra em um “estado de desejo”(estado de desejo é o momento vinculado as necessidades físico-biológicas): o homem, despertado pela autoconsciência deseja os objetos que o circundam, deles se apropria e utiliza. Mas começa a sentir, neste processo, que os objetos não são o verdadeiro fim do seu desejo, que suas exigências só se podem satisfazer pela associação com outros indivíduos: A autoconsciência só se satisfaz em uma outra autoconsciência (luta pelo reconhecimento), diz Hegel. O sujeito humano se constitui tão somente no horizonte do mundo humano e a dialética do desejo deve encontrar sua verdade na dialética do reconhecimento. Aqui a consciência faz verdadeiramente a sua experiência como consciência-de-si porque o objeto que é mediado para o seu reconhecer-se a si mesma não é o objeto indiferente do mundo, mas é ela mesma no seu ser-outro: é outra consciência-de-si.

É quando Hegel analisa o item A da quarta seção: “Independência e dependência da consciência-de-si: dominação e escravidão”, tema principal de nosso encontro. A autoconsciência só se satisfaz em uma outra autoconsciência.Esta estranha afirmação se explica na discussão sobre a relação entre a condição de senhor e a de escravo que se segue. O conceito de trabalho desempenha um papel central nessa discussão, na qual Hegel mostra que os objetos do trabalho não são coisas mortas, mas concretizações vivas da essência do sujeito: ao lidar com tais objetos, o homem está de fato lidando com o homem. O indivíduo só pode tornar-se o que ele é através de outro indivíduo; sua existência mesma consiste neste “ser-por-outro”. Mas essa relação não é de modo algum de cooperação harmoniosa entre indivíduos igualmente livres que buscam o bem comum. Ao contrário, é uma “luta de vida ou de morte” entre indivíduos essencialmente diferentes, um deles, “senhor”, o outro, “escravo”. Vencer essa luta é o único meio de o homem chegar à autoconsciência, isto é, ao conhecimento de suas potencialidades e à liberdade de realizá-los. E a verdade da consciência-de-si não é o “Eu” mas o “Nós”, “o eu que é um nós e Nós que é um eu”.

Marx, em 1844, aprofundou os conceitos básicos de sua própria teoria através de uma análise crítica da “Fenomenologia do Espírito”, de Hegel. Ele descreveu a “alienação” do trabalho nos termos da discussão hegeliana sobre a condição do senhor e do escravo. Ele viu a grandeza desta obra no fato de Hegel ter concebido a “autocriação” do homem (isto é, a criação de uma ordem social racional através da ação livre do próprio homem) como o processo de “reificação” e de sua “negação”; no fato de Hegel ter apreendido a “natureza do trabalho” e ter visto que o homem é “o resultado do seu trabalho”. A intuição de Hegel mostra que a relação entre senhor e escravo é histórica, é resultante da necessidade de certas relações de trabalho e que pode ser modificada.

Sua análise começa com a “experiência” de que o mundo, em que a autoconsciência deve ser provada, está cindido em dois domínios conflitantes. O escravo não é um ser humano que trabalha, mas é essencialmente um trabalhador; seu ser é o trabalho. Ele produz objetos que pertencem a outro; ele não pode separar sua existência destes objetos; eles são “as correntes de que ele não se pode libertar”. A dependência nem é condição pessoal, nem se funda em condições naturais ou pessoais, mas é mediatizada pelas coisas. Ela é consequência da relação do homem aos produtos de seu trabalho. O trabalhador se torna uma coisa cuja existência consiste em ser usada. O ser do trabalhador é um “ser-por-outro”. Ao mesmo tempo, porém, o trabalho é o veículo que transforma esta relação. A ação do trabalhador não se esgota na criação dos produtos do seu trabalho; o trabalhador sabe que o seu trabalho perpetua este mundo; ele vê e reconhece a si mesmo nas coisas que o cercam. Sua consciência agora está “exteriorizada” no seu trabalho. Os objetos de seu trabalho não mais serão coisas mortas que o acorrentam a outros homens, mas produtos do seu trabalho e, como tal, parte integrante do seu próprio ser. Hegel dá às formas de mediação que unem dialeticamente a consciência servil ao Senhor e ao mundo a denominação geral de “ação de formar-se” ou cultura. O mundo trabalhado é, com efeito, mediador para o escravo na sua relação com o senhor, mas aqui o trabalho, sob a forma social do serviço, irá formar a consciência servil, pela retenção do desejo, para uma relação verdadeiramente humana com o mundo (VAZ, 2002, p. 198).

Por outro lado, o processo do trabalho cria autoconsciência não somente no trabalhador, mas também no senhor. A condição do senhor se define pelo fato de que ele controla os objetos do seu desejo, sem os produzir. Ele satisfaz suas exigências através do trabalho de alguém, não do dele. O trabalhador, que é por ele controlado, fornece-lhe os objetos que ele deseja, de modo acabado, prontos para serem usados. O trabalhador, pois, impede o senhor de encontrar o “lado negativo” das coisas, aquele em que elas se tornam entraves para o homem. O senhor recebe todas as coisas como produtos do trabalho, não como objetos mortos, mas como coisas que carregam o selo do sujeito que as produziu. Quando o senhor lida com estas coisas como sua propriedade, de fato está lidando com outra autoconsciência, a do trabalhador, a do ser através da qual ele se satisfaz. Desta maneira, o senhor vem a perceber que ele não é “ser-por-si”, independente, mas que depende essencialmente de outro ser, da ação de quem trabalha para ele.

Hegel desenvolveu a relação entre senhor e escravo como uma relação em que cada um dos termos reconhece que tem sua essência no outro e que só atinge sua verdade pelo outro. E o pensamento consiste em saber que o mundo objetivo é, na realidade, um mundo subjetivo, que o mundo objetivo é objetivação do sujeito. O sujeito que realmente pensa, compreende o mundo como “seu” mundo. Neste, as coisas só atingem sua verdadeira forma como objetos “compreendidos”, isto é, como parte essencial do desenvolvimento de uma autoconsciência livre. Este é o processo mesmo da História. O sujeito consciente de si não atinge sua liberdade na forma do “Eu” e sim na do “Nós”, o Nós associado que aparecera pela primeira vez como resultado da luta entre senhor e escravo. A realidade histórica daquele “Nós”, encontra sua verdadeira realização na vida de uma nação.(Obs. A quase totalidade das ideias desenvolvidas neste item sobre a “Fenomenologia do Espírito” foram extraídas de Marcuse, “Razão e Revolução”, p. 105-120).

Quero destacar, ao final deste texto, duas considerações de Henrique Vaz, em seu texto “Senhor e Escravo: uma parábola da filosofia ocidental”. A primeira, logo no início do artigo. Diz ele: A dialética do Senhor e do Escravo aflora na superfície do texto de Hegel a partir desse veio muito profundo ou dessa experiência fundadora que configura as sociedades ocidentais, desde a sua aurora grega como sociedades políticas, ou seja, sociedades constituídas em torno da luta pelo reconhecimento, oscilando entre os pólos da physis que impele a particularidade do interesse e do desejo, e do nomos que rege a universalidade do consenso em torno do bem reconhecido e aceito (2002, p. 183). E a segunda, no último parágrafo de texto: Vemos, assim, que a escritura do texto hegeliano, na página célebre da Fenomenologia, que descreve a dialética do Senhorio e da Servidão, repousa sobre um implícito não-escrito que, para voltar à comparação inicial, pode ser designado como o veio que corre ao longo de toda a história do Ocidente e que aponta para a direção de um horizonte sempre perseguido, e no qual o seu destino se lê como utopia de suprema grandeza e do risco mais extremo: a instauração de uma sociedade onde toda forma de dominação ceda lugar ao livre reconhecimento de cada um, no consenso em torno de uma Razão que é de todos (2002, p. 202)

Um comentário:

Pedro Allan Portácio de Queiroz disse...

Muito boa exposição. Trata-se de uma obra densa, difícil e árdua. Mas sua explanação elucidou algumas dúvidas minhas.

Parabéns. pedrofilosofiaufc@gmail.com